O dia amanheceu gélido, o quarto estava sujo, bagunçado e completamente solitário porque ela já não estava na cama. Era um dia comum em que todos se apressavam para ir trabalhar e fazer aquilo que todos fazem quando não estão vivos, até mesmo ela que era regida por seu próprio tempo. No banheiro retirava lentamente os fios vermelhos da escova enquanto só pensava que mais tarde iria se divertir sob a trilha sonora que faz seu sangue ferver e que além da libertação ainda ia ter o Dado como companhia. Antes das 6hs Luzia já havia bebido dois copos cheios com Vodka, essa era sua espécie de café da manhã e ninguém saberia porque ela já estava profissional em apagar os vestígios de seu alcoolismo velado. Se bem que nem precisava esconder, pois vivia sozinha num Kitnet mal cheiroso no centro da cidade. Quem se importa com uma mulher que não tem passado? Os homens a viam e só enxergavam sexo como se ela não tivesse um cérebro ou voz. Como se seu corpo fosse seu único propósito de vida. Que pensamento lixo!
- Se não quiser trabalhar, tem uma fila lá fora de pessoas que querem
seu lugar Pequena Sereia do subúrbio.
"Maldito capitalismo, sempre motivando pela
ameaça" Pensou ela e ao invés de responder assim, disse apenas:
-Eu estou aqui, ok? Eu me atrasei mas eu estou aqui.
-Pois, vá deixar o pedido da mesa 5 antes que eles deem o fora por sua
demora, Alteza.
Os diálogos enfadonhos eram sempre os
mesmos. O chefe era um cretino que a tratava mal na frente dos outros e que
vinha cheio de carinhos quando ninguém via. Porco nojento, pai de família,
cristão devotado e um assediador nato. O lugar era ruim, mas ela não podia
sair. Estava com dois meses de aluguel atrasado e se esquivava como podia do
homem repugnante, mas não podia se dar ao luxo de sair. Lá pagava mal e ela
ainda tinha que alternar com um segundo emprego, este por sua vez noturno que
inclusive pagava melhor devido o grande volume de gorjeta, mas especialmente
naquela noite não iria graças ao festival que aconteceria mais tarde e porque o
dono do sorriso mais admirado estaria lá.
O Dado era o único amigo que Luzia
possuía mesmo que não tivessem uma amizade que fizesse sentido. Estavam no meio
termo entre casal e amigos se é que isso é possível. Mas a questão é que ela o
considera amigo porque era o único com quem se comunicava e que sabia que ele
estava realmente ouvindo.
Os dois se conheceram em uma festa a
três anos atrás, numa noite de bandas ruins e pessoas excessivamente bêbadas.
Era festa de aniversário de um baixista de uma banda local que não agradou,
para fugir do som que não combinava com seu gosto e sem querer voltar para casa
a menina decidiu ir até a laje. As vezes a melhor companhia são as estrelas e
ela tinha isso para sí desde criança. Lá além do frio cortante e de uma vista incrível
de um céu aberto encontrou um rapaz solitário sentado com um olhar hipnótico.
-É melhor sair garota, cheguei aqui primeiro
-Cara, pode se matar aí que nem ligo. Vou só ficar quieta aqui.
-E bater uma aqui eu posso?
-Ai seu babaca. Você tem para onde ir não para fazer essas coisas?
Ele sorriu por ter conseguido a
irritação que precisava. Ele sempre sorria de um jeito que fazia as pessoas o
perdoarem pelo que tivesse dito ou feito.
-Que estranho.
-O que?
-Quando você sorriu não pareceu um idiota.
-Todos somos idiotas, dependendo da época nós só mudamos a intensidade
disso ser perceptível.
-Ainda está sob efeito de drogas para falar de forma tão sincera, baby?
Uma gargalhada tomou de conta do local e ela sentindo os pés doerem sob
as botas sentou ao lado dele.
-Acho que você não seja tão mal assim, cara.
-Posso ser pior, você tem que parar de criar expectativas de quem não
conhece ruivinha.
-Luzia, ok? Não gosto de rótulos infelizes.
-Eduardo, mas pode chamar de Dado. Esse é meu rótulo e eu não fujo dele.
-Será que você é o Dado do Manfredini. Bem, então... “Dado, dado, dado / o que fizeram com você? Dado, Dado,
Dado / o que fizeram com você?” disse cantando o refrão famoso.
-Quem chama o Renato Russo assim? Não fizeram nada comigo, nem todo
mundo tem uma história triste para entretenimento alheio.
-Eu o chamo assim por achar mais íntimo...Que bom que não tem história
triste, a minha talvez agora seja superar a morte dele.
-É foda, foi em outubro e a porra do álbum saiu agora em julho. Parece
que foi ontem que li no jornal “AIDS mata Renato Russo”. Disse gesticulando
muito.
-Quando eu comprei o LP, corri para casa, acendi uma vela e devo admitir
que chorei algumas vezes...pô, eu amava aquele cara.
- As músicas desse álbum tem um pesar imenso. Minha predileta deles
sempre foi Duas Tribos, mas quase perdi vontade de ouvi-la de novo, depois de
Uma Outra Estação vir com canções tão noturnas e pô depois da morte do cara.
-Não existe uma realidade para mim onde eu não escute Legião.
-Você já ouviu grunge? Não existe uma realidade para mim onde eu não
escute Nirvana.
-Ok, Yankee fique com suas
canções internacionais que eu mergulho no Rock que eu entendo.
-Que patético, nada a ver essa de Yankee.
Um dia você vai entender que Rock tem mais a ver com sentir do que com entender
e outra, só o que tem é revista de cifra com tradução e tudo.
Eles sorriram.
Naquela noite atravessaram o tempo
falando sobre música, filmes, falando até da morte da princesa Diana, citaram
livros envoltos por risos e hálitos regados a álcool. Ele era admirador dos
Smiths, tinha uma queda por filmes com sotaque britânico e ela achava a Audrey
Hepburn a mulher mais linda do mundo. Nunca uma noite no trágico ano de 1997
fora tão interessante para aqueles dois e eles nem transaram.
-Acorda garota, são 17:09! Vai atender aquela mesa antes de ir embora!
-Ah, já tô indo, já tô indo.
Luzia fez seu ultimo
atendimento do dia, retirou o uniforme que odiava e foi o mais rápido que pode
para casa. O banho gelado foi sob o som da voz de Eddie Vedder entoando Better
Man numa fita K-7 em seu aparelho de som no quarto. Saiu do banheiro, pegou o
vestido preferido e pensou na saudade de vibrar pelo Rock e na ânsia por encontrar seu Dado viciado.
Casa lotada, gente se divertindo e
ele estava lá, mas não era o mesmo. Tinha olhos diferentes e uma sombra
pairando sobre sí. Ela tentou o agradar, disse que ele estava uma delicia, tentou fazê-lo sorrir, mas ele só reagia ao
que ela dizia. Beberam alguns drinks, jogaram olhares um para o outro e terminaram a noite
sob a laje em silencio. Mais uma vez não transaram.
Na foto Audrey Hepburn porque ela tem os olhos da Luzia.